
Na idade média, a sociedade européia esteve solidamente unificada em torno da fé católica, um fenômeno conhecido com “cristandade”. Durante esse período ocorreram uma série de mudanças drásticas dentro da cristandade, sendo as mais importantes:
1. Na área bíblica: a palavra de Deus deixou de ser fonte de autoridade dentro da igreja, passando para os concílios, para o papa, e uma briga intensa pra ver quem de fato comanda a igreja, são as decisões conciliares ao papado;
2. Na doutrina da salvação: a livre graça de Deus como apregoada, não só por Agostinho (354-430), mas como Anselmo de Canterbury (1033-1109), Tomás de Aquino (1225-1274), Tomás de Kempis (1379 ou 1380-1471), essa doutrina foi eclipsada na idade Média;
3. Início do humanismo: tem-se uma ênfase totalmente centrada no ser humano;
4. Ênfase nos sacramentos;
5. Ênfase em penitências;
6. Ênfase na venda de indulgências (venda do perdão dos pecados).
A base desse sistema era a idéia de que as pessoas deviam somar seus esforços à graça de Deus a fim de alcançar a salvação, sendo assim, a justificação era entendida no sentido moral, como algo exigido por Deus das pessoas, e não como algo concedido gratuitamente a elas. Somente quando a graça fizesse sua obra de transformar o pecador em um santo, Deus poderia assim justificá-lo, declarando-o justo. Trocando em miúdos, somente quando alguém se tornasse “bom” ele poderia ser justificado perante Deus (Sl 14:2, 3).
Nesse contexto surge Martinho Lutero, muda-se o panorama da Europa, temos a reforma protestante, uma tentativa de reformar, purificar a igreja. A reforma teve início em outubro de 1517, quando Lutero afixou suas Noventa e cinco teses protestando contra a cobrança de indulgências e o afastamento da verdade pela igreja, na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, em seguida veio a Dieta de Worms, que ocorreu em 1521. Logo depois as chamas da reforma começaram a ser difundidas em toda Alemanha e Europa, com uma ênfase maior na Escócia e Inglaterra. Enquanto isso os cinco solas da Reforma (salvação SÓ pela graça, mediante a fé SOMENTE, UNICAMENTE por meio de Cristo, EXCLUSIVAMENTE para a glória de Deus e baseado TÃO SOMENTE nas Escrituras) eram inculcados nas mentes que estavam sendo renovadas pelas Escrituras.
SURGE CALVINO
Em 10 de julho de 1509, na zona rural de Noyon, na Picardia, província ao norte da França, a aproximadamente 96 km de Paris nasce João Calvino (seu nome francês é Jean Cauvin). Seu pai, um administrador financeiro do bispo católico da diocese de Noyon, criou o filho para ingressar no sacerdócio da Igreja Católica Romana. Quando Calvino tinha 14 anos, entrou na Universidade de Paris a fim de estudar teologia, que naquela época ainda não havia sido influenciada pela Reforma e estava saturada de teologia medieval, conforme Lawson, Matos Piper e Shaw. Contudo há um debate sobre qual graduação realmente Calvino fez em Paris. Ferreira juntamente com McGrath salientam que a graduação de Calvino fora em Latim e Humanidades. Caso ele realmente não tenha tido graduação em teologia, isso nos leva a admirar o lado autodidata do reformador. Aos 17 anos graduou-se como mestre em Ciências Humanas. Quando Calvino tinha 19 anos, seu pai entrou em conflito com a Igreja e mandou o filho deixar a teologia para estudar direito, o que Calvino fez durante os três anos seguintes em Orleans e Bourges. Durante esse tempo Calvino aprendeu grego e estudou o poder do pensamento analítico e da argumentação persuasiva, mal ele sabia que estas habilidades mais tarde seriam usadas no púlpito.
Seu pai Gerard morreu em 1531, quando Calvino tinha apenas 21 anos de idade. Com isso ele sentiu-se livre para largar o direito e ir estudar a tão desejada literatura clássica, que havia se tornado o seu primeiro amor. No ano seguinte, terminou seus estudos em direito e recebeu o título de doutor (1532), nesse ano ele publicou seu primeiro livro, um comentário sobre a obra De Clementia, livro este que fora a dissertação de doutorado de Calvino.
UMA CONVERSÃO REPENTINA
Quando estudava em Bourges, Calvino teve contato direto com as verdades bíblicas da reforma. Não temos muitas informações sobre como Deus fez-se conhecido a Calvino, apenas há um relato desse fato no prefácio de um de seus comentários sobre o livro de Salmos que diz:
Calvino fez tal qual Paulo fizera após sua conversão, ele mudou o objeto de sua lealdade, abandonando a Igreja Católica Romana a fim de unir-se à crescente causa Protestante.
Em novembro de 1533, Nicholas Cop, amigo de Calvino, pregou na abertura do semestre de inverno na Universidade de Paris e foi convocado pelo Parlamento a dar explicações, pois suas doutrinas eram parecidas com as de Lutero. Ele fugiu da cidade e uma perseguição geral aconteceu conta a “maldita seita luterana”, como o rei Francisco I a denominou. Calvino estava entre os que escaparam. Os seus laços de amizade com Cop eram tão estreitos, que suspeita-se ter sido Calvino o autor da mensagem proferida por Cop naquele dia.
A FORMAÇÃO DE CALVINO
Nessa fuga, Calvino foi para a propriedade rural de Louis Du Tillet, um homem abastado, opulento, que era solidário a Reforma. Lá ele passou cinco meses estudando a grande coleção de livros teológicos de Tillet, leu a bíblia juntamente com os escritos dos pais da igreja; particularmente Agostinho. Finalmente renuncio seu salário que recebia da Igreja Católica, pelo seu suposto pastorado em Noyon e aderiu completamente a Reforma.
Após uma rápida viagem a Paris e Orléans, dirigiu-se a Basiléia na Suíça (1534-1536) onde para redimir o tempo, “devotou-se ao estudo do hebraico”, como disse John Piper: “Imagine tal coisa! Será que um pastor hoje, exilado de sua igreja, seu país e vivendo em perigo mortal estudaria hebraico? O que aconteceu à visão do ministério para que hoje em dia tal coisa pareça inconcebível?”, contudo em março de 1536 Calvino publicou a sua maior e mais famosa obra: As Institutas da Religião Cristã. As Institutas de Calvino se tornariam a obra-prima decisiva da teologia protestante. O êxito dessa obra foi instantâneo, em nove meses se esgotou a edição, que por estar escrita em latim, era acessível a leitores de várias nacionalidades. Não devemos pensar que isso fora meramente um exercício acadêmico para Calvino. Anos mais tarde, ele nos diz o que o estava impulsionando:
Em vista disso, lembremo-nos quando estivermos com As Institutas em nossas mãos, que ela fora produzida na fornalha dos mártires. Nos vinte e três anos subseqüentes, As Institutas passariam por cinco ampliações principais até chegar em 1559 ao seu formato atual. Este trabalho explicou a verdadeira natureza do cristianismo bíblico. Na ultima edição, encontramos a sua famosa definição da vida cristã:
RUMO A GENEBRA
Quando houve uma anistia temporária aos exilados franceses, Calvino voltou a França, onde ficou com seu irmão Antonie e sua irmã Marie. Após isso partiu para Estrasburgo, e de lá para o sul da Alemanha, com a intenção de estudar e escrever em reclusão e tranqüilidade. Ele nunca mais retornaria a sua terra natal. Uma guerra entre Charles V (o Sacro imperador romano) e Francis I resultou em movimentos de tropas que bloquearam a estrada para Estrasburgo e Calvino precisou fazer um desvio por Genebra, onde ele pretendia passar somente uma noite. Esse fato é memorável, pois nele vemos a soberana ação de Deus em todas as circunstâncias!
Na noite em que Calvino permaneceu em Genebra, William Farel, o líder da Reforma naquela cidade, descobriu que ele estava ali e o procurou. Esse encontro foi um dos mais importantes da história, não somente a de Genebra, mas também para o mundo, conforme Calvino relatou mais tarde em seu prefácio do comentário sobre o livro dos Salmos:
Em resposta ao desafio de Farel, o jovem teólogo concordou em ficar, reconhecendo que este era o objetivo de Deus para sua vida. Em vez de estudar no barulho ensurdecedor do silencio, enclausurado em Estrasburgo, Calvino de repente mudou o foco de suas atenções para Genebra. Desse acontecimento pra frente, toda página de 48 volumes de livros e tratados e sermões e comentários e cartas que escreveu seriam martelados na bigorna da responsabilidade pastoral. Calvino tomou sobre si as responsabilidades em Genebra, primeiramente como professor das Escrituras e quatro meses depois, pastor da Catedral de Saint Pierre (São Pedro).
BANIDO PARA ESTRASBURGO, CASA-SE
Calvino e Farel começaram a trabalhar para reformar a igreja em Genebra, ali fizeram uma confissão de fé e suas tentativas de zelar pela Ceia do Senhor por meio da excomunhão (impedir que as pessoas que viviam abertamente em pecado participassem da ceia) resultou, na expulsão deles da cidade em 1538.
Calvino deu um suspiro de alívio e pensou que Deus o estava aliviando do peso intenso dos deveres pastorais para poder recomeçar seus estudos. Contudo quando Martin Bucer descobriu a disponibilidade de Calvino, Fe a mesma coisa para levá-lo para Estrasburgo, tal qual Farel fizera outrora. Ele concordou em ir a Estrasburgo para ensinar a Palavra. Durante três anos pastoreou uma congregação reformada de refugiados de fala francesa, alem de ensinar regularmente o Novo Testamento no instituto teológico local, escreveu também seu primeiro comentário, na carta aos Romanos, e lançou a segunda edição ampliada das Institutas.
Como todo bom pastor, o povo queria vê-lo casado, ele tinha 31 anos de idade e várias mulheres já haviam mostrado interesse. Calvino disse a seu amigo casamenteiro Willian Farel, o que ele desejaria numa esposa: “A única beleza que me cativa é esta – que ela seja virtuosa, não muito refinada ou exigente, econômica, paciente, preparada para provavelmente cuidade de minha saúde”. Talvez durante essa sua estadia em Estrasburgo, a maior providência divina, tenha sido o seu encontro com Idelette Stoudeur, que era membro de sua congregação (juntamente com seu marido), uma viúva anabatista (seu marido, Jean, havia falecido na primavera de 1540 por causa de uma epidemia) que tinha um filho e uma filha do seu primeiro casamento. Eles casaram-se em agosto de 1540.
RETORNO PARA GENEBRA
Entrementes, o Conselho Municipal de Genebra estava revendo suas afirmações sobre Calvino. No dia 1º de maio, este Conselho anulou a expulsão de Calvino e o exaltou como homem de Deus. Essa decisão foi agonizante para Calvino, pois sabia que a vida em Genebra não seria fácil, cheia de controvérsias e perigo. No inicio de outubro ele ainda relutava e disse a Farel que não pretendia voltar, “porém, porque eu sei que não sou meu próprio mestre, ofereço meu coração como um verdadeiro sacrifício ao Senhor”. Essa ultima frase se tornou o lema de Calvino.
No dia 13 de setembro de 1541, Calvino entrou em Genebra pela segunda vez, e desta feita para servir a igreja até a morte. Seu casamento com Idelette trouxe muito sofrimento à alma de Calvino. Idelette teve um aborto, perdeu uma filha durante o nascimento, deu à luz um filho que morreu duas semanas após o nascimento. Calvino, mais tarde escreveu: “Certamente o Senhor nos infligiu uma dolorosa ferida com a morte de nosso filho. Mas Ele próprio é pai e sabe o que é bom para seus filhos”. Mesmo em situações adversas, Calvino reconhecia o poderio, supremacia e soberania de Deus. Será que nós estamos dispostos a reconhecer isso também, mesmo em situações adversas? Sabemos que os adeptos da “teologia relacional” não! Coitados… Apesar dos teístas abertos não concordarem com essas citações, Deus está no controle, e as misericórdias divinas se renovam a cada manha sobre todos nós!
Para finalizar sua história matrimonial, Idelette faleceu de tuberculose em março de 1549, aos 40 anos de idade. Calvino nunca maios casou-se. Pelo resto de sua vida, ele se dedicou ao trabalho do Senhor com uma visão singular, ímpar, inigualável.
Contudo, quando da sua volta a Genebra, o reformador chegou a cidade pregando, e isso ele fez reassumindo seu ministério no púlpito precisamente a partir do ponto em que o tinha deixado três anos antes – no versículo seguinte da exposição que fazia antes do exílio – esse fato revelou a arte expositiva de João Calvino, que tornou-se uma base pregando varias vezes aos domingos e em alguma semanas todos os dias. A sua exposição das escrituras (da qual eu admiro e muito gosto) , verso por verso, semana após semana, e mesmo dia após dia, faria de Genebra um célebre marco da verdade.
Nesse tempo tumultuado, começaram a ir para Genebra protestantes franceses, conhecidos como huguenotes; protestantes da Escócia e da Inglaterra, refugiados da Alemanha e Itália. Todos estes com um mesmo desejo: aprender da palavra de Deus. Com isso a população de Genebra dobrou para mais de vinte mil pessoas. A cidade estava acalorada com estudantes da palavra, e Calvino era o professor. Para Calvino, as escolas teológicas são “berçários de pastores”, o que o levou a criar a Academia de Genebra, em 5 de maio de 1559, começando com aproximadamente 600 alunos, e aumentando já no primeiro ano para 900. Ali era onde Calvino instruía os protestantes refugiados de outras localidades.
Dentre estes refugiados, encontrava-se o escocês John Knox que dizia o seguinte sobtre a igreja de Calvino em Genebra: “a mais perfeita escola de Cristo desde os dias dos apóstolos”. Enquanto esteve em Genebra, Knox fez parte de um grupo de exilados que ouviam as pregações expositivas de Calvino, e traduziu a Bíblia de Genebra para refugiados de língua inglesa. Esta tradução foi a primeira bíblia com notas teológicas impressas nas margens das paginas, o que era uma extensão do ministério de Calvino no púlpito. Nos cem anos subseqüentes ela tornou-se a versão predominante entre os puritanos. Os Peregrinos trouxeram a Bíblia de Genebra consigo para a America do Norte, e ela se tornou a bíblia preferida entre os primeiros colonizadores.
Durante o ministério de Calvino em Genebra, um homem chamado Denis Raguenier começou a fazer um registro escrito dos sermões de Calvino. Ele o fazia para uso pessoal. Eventualmente este homem foi contratado para copiar os sermões “de uma hora”, os quais continham por volta de seis mil palavras. Mais tarde o sínodo de DORT na Holanda (1618-1619) e a Assembléia de Westminster na Inglaterra (1643-1649), a qual esboçou a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster, tornaram-se frutos da pregação bíblica de Calvino.
DIANTE DA ADVERSIDADE
Seu conhecido, Colladon, que morou em Genebra durante esses anos, descreve assim a vida de Calvino:
Para Calvino, estes anos prolíferos em Genebra não foram “a maior maravilha de todos os tempos”. Constantemente, enquanto subia ao púlpito, muitas dificuldades lhe sobrevinham de todos os lados. Ele escreveu aos médicos em 1564, aos 53 anos e descreveu sua cólica e vômito de sangue, febre intermitente, acessos de calafrios, a gota e a “dor excruciante” de suas hemorróidas. Mas para complicar ainda mais, o pior estava por vir: eliminar os cálculos renais sem o alívio de sedativos.
Não bastasse esse sofrimento físico todo, haviam ameaças a sua própria vida. “Não lhe eram estranhos os sons de uma multidão do lado de fora da sua casa ameaçando jogá-lo no rio e disparando seus mosquetes”. No seu leito de morte, Calvino disse aos pastores ali presentes: “Tenho vivido aqui entre contínuas disputas. Tenho sido saudado à minha porta, por zombaria, com quarenta ou cinqüenta tiros de arcabuz [grande arma de fogo]”.
Além disso, um dos espinhos mais persistentes na carne de Calvino era os libertinos, que se orgulhavam de sua pecaminosa licenciosidade. Eles praticavam adultério abertamente e ainda assim desejavam participar da ceia do Senhor, entretanto Calvino não aceitava isso.
Certo dia os libertinos que haviam sidos excomungados por causa de sua conhecida promiscuidade sexual, por decisão do Conselho Municipal, tiveram o direito novamente de participar da ceia do Senhor:
Este era o zelo que Calvino tinha para com o Senhor e suas ordenanças! Que coragem do reformador! Será que temos a mesma coragem? Busquemos a Deus para que a tenhamos!
FIEL ATÉ A MORTE
Conforme chegava o final de sua vida, Calvino, encarou a morte, assim como encarou o púlpito: com resolução, de frente! A soberania de Deus, e a fé que é concedida por Ele, fica evidente em seu testamento, o qual ditou em abril de 1564:
João Calvino morreu aos 54 anos em 27 de maio de 1564, nos braços de Theodore Beza, seu sucessor. Calvino fora enterrado em um cemitério comum, sem pompa e circunstancia. Por seu próprio desejo, não houve lápide alguma sobre sua sepultura, pois ele não queria que nada obscurecesse a glória de Deus.
Que nesse dia onde lembramos dos 500 anos de nascimento de João Calvino, essa reflexão sobre a história desse grande reformador usado por Deus, motive-nos a sermos homens e mulheres que não se conformam com este mundo.
Façamos diferença em nossa geração e nas futuras (isso é, se Cristo não voltar antes…), tal qual Calvino fizera na dele e na nossa!
Deus nos abençoe!
REFERÊNCIAS
LAWSON, Steven J.. A Arte Expositiva de João Calvino. São José dos Campos: Editora Fiel, 2008.
MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
PIPER, John; O legado da alegria soberana – a graça triunfante de Deus na vida de Agostinho, Lutero e Calvino. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
SHAW, Mark. Lições de Mestre. São Paulo: Mundo Cristão, 2004.
Gostei muito da explanação dada a vida do João Calvino, continuem assim meus parabens.
Glórias ao nosso Deus Eli.
Em breve teremos novos artigos sobre história da igreja e personagens relevantes, tal qual Calvino.
Obrigado!